terça-feira, 13 de novembro de 2007

A Agenda para o Desenvolvimento

Estabelecendo uma “Agenda para o Desenvolvimento” para a 39ª Sessão da Assembléia Geral da OMPI - De 27/09 à 5/10/2004, com este título foi apresentado pela primeira vez na OMPI as orientações propostas pelo Brasil e Argentina, nos primórdios dessas discussões. É importante que se conheça as principais linhas norteadoras da proposta, a saber:

I – Desenvolvimento, o mais importante desafio da Comunidade Internacional

Na chegada de um novo milênio, desenvolvimento sem dúvida permanece como um dos mais assustadores desafios da Comunidade Internacional. A importância de encarar este desafio tem sido amplamente conhecida em muitos fóruns internacionais do mais alto nível. As Nações Unidas adotaram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, os quais estabeleceram um firme cometimento da comunidade internacional para explicitar os problemas significantes que afetam os países em desenvolvimento e LDCs. O Programa de Ação para os países desenvolvidos para a década 2001-2010, o Consenso de Monterey, a Declaração sobre Desenvolvimento Sustentável de Johannesburgo e o Plano de Implementação acordaram na Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável, a Declaração de Princípios e o Plano de Ação da primeira fase da Cúpula Mundial de Informação à Sociedade, e mais recentemente o Consenso de São Paulo adotado na XI UNCTAD, todos tomaram o desenvolvimento como o coração de suas ações e preocupações. Isto também foi o caso no contexto da Rodada Multilateral de Negociações de Doha da OMC (a “Agenda Desenvolvimento de Doha”), que foi lançada na 4ª Conferência Ministerial da OMC em novembro de 2001.

II – A dimensão do desenvolvimento e a proteção da propriedade intelectual

Inovação tecnológica, ciência e atividade criativa em geral são com certeza reconhecidas como importantes fontes de progresso material e bem-estar. Entretanto, apesar dos importantes avanços tecnológicos e científicos e promessas dos séculos XX e início do XXI em muitas áreas, um grande “buraco de conhecimento”, assim como uma “divisão digital”, continua separando as nações ricas das pobres.

A proteção à Propriedade Intelectual é pretendida como um instrumento para promover inovação tecnológica, assim como a transferência e a disseminação da tecnologia. A proteção à Propriedade Intelectual não pode ser vista como um fim em si mesma, nem pode a harmonização das leis de Propriedade Intelectual levar a padrões mais elevados de proteção em todos os países, independente de seus níveis de desenvolvimento.

O papel da Propriedade Intelectual e seu impacto no desenvolvimento deve ser cuidadosamente acessado na base de caso a caso. A proteção à Propriedade Intelectual é um instrumento de política operacional que pode, na prática, produzir benefícios assim como custos, que podem variar de acordo com o nível de desenvolvimento do país. A ação é, por esta razão, necessária para garantir, em todos os países, que os custos não se sobreponham aos benefícios da proteção da Propriedade Intelectual.

A respeito disto, a adoção da Declaração de Doha no Acordo de TRIPs e a Saúde Pública na 4ª Conferência Ministerial da OMC representou um importante marco. Reconheceu-se que o Acordo TRIPs, como um instrumento internacional para a proteção da Propriedade Intelectual, deve operar de uma maneira que suporte e não corra ao contrário dos objetivos da saúde pública de todos ao países.

A necessidade de integrar a “dimensão do desenvolvimento” na elaboração de políticas a respeito da proteção da Propriedade Intelectual tem recebido um reconhecido aumento a nível internacional. Também no trabalho da OMC, parágrafo 19 da Declaração Ministerial de Doha da OMC, em estabelecer um mandato para o Conselho de TRIPs no contexto da Agenda do Desenvolvimento de Doha, refere-se explicitamente à necessidade de tomar completamente conta da dimensão do desenvolvimento.

III – Integrando a dimensão do desenvolvimento às atividades da OMPI

Como um membro do sistema das Nações Unidas, incumbe à OMPI ser totalmente guiada por objetivos amplos de desenvolvimento que as Nações Unidas determinaram para ela mesma, em particular nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Concepções sobre desenvolvimento devem ser totalmente incorporados às atividades da OMPI. O papel da OMPI, entretanto, não é para limitar-se à promoção da proteção da Propriedade Intelectual.

A OMPI é um organismo que, de acordo com a sua delegação, serve para tomar conta do desenvolvimento amplo relacionado aos atos e resoluções do sistema das Nações Unidas como um todo. Entretanto, também poderia considerar a possibilidade de emendar a Convenção da OMPI (1967) e garantir que a dimensão do desenvolvimento seja inequivocamente determinado para constituir um elemento essencial do programa de trabalho da Organização.

Nós, por esta razão, convocamos diante da Assembléia Geral da OMPI a tomar ação imediata com o intuito de providenciar a incorporação da “Agenda Desenvolvimento” no programa de trabalho da Organização.


IV – O dimensão do desenvolvimento e estabelecimento de normas de Propriedade Intelectual: salvaguarda de flexibilidades de interesses públicos

A OMPI é correntemente engajada em atividades de regulamentação em muitos Comitês técnicos. Algumas dessas atividades teriam o acordo de países em desenvolvimento e LDC´s sobre os padrões da proteção da Propriedade Intelectual que largamente excedem obrigações existentes sobre o Acordo de TRIPs da OMC, enquanto estes países estão ainda trabalhando com o oneroso processo de implementação do TRIPs.

Enquanto o acesso à informação e a divisão do conhecimento dizem respeito à elementos essenciais que subsidiam a inovação e a criatividade na economia da informação, acrescentar novas camadas de proteção à Propriedade Intelectual no ambiente digital obstruiria o livre fluxo da informação e escapariam esforços para auxiliar novos arranjos para promover inovação e criatividade, assim como o estabelecimento do Creative Commons. A presente controvérsia em torno do uso das medidas de proteção tecnológica no ambiente digital é também uma grande preocupação.

As provisões de quaisquer tratados neste campo devem ser balanceadas e claramente levados em conta os interesses dos consumidores e do público como um todo. É importante salvaguardar as exceções e limitações existentes nas leis domésticas dos Estados Membros.

Para penetrar no potencial de desenvolvimento oferecido pelo ambiente digital, é importante ter em mente a relevância dos modelos de acesso aberto de promoção da inovação e criatividade. A este respeito, a OMPI deveria considerar atividades de empreendimento com vistas a explorar a promessa colocada pelos projetos abertos colaborativos para desenvolver bens públicos, como exemplificado pelo Projeto Genoma Humano e Fonte de Software Livre.

Finalmente, há uma urgente necessidade de examinar as implicações do potencial de desenvolvimento de muitas das provisões do Tratado proposto na Proteção dos Organismos de Radiodifusão que o Comitê Permanente de Direito Autoral e Direitos Conexos está atualmente discutindo, levando em consideração os interesses dos consumidores e do público em geral.

V – A dimensão do desenvolvimento e a transferência de tecnologia

A transferência de tecnologia tem sido identificada como o propósito de que a proteção à Propriedade Intelectual deve ser um suporte à transferência e não o contrário, como explícito nos artigos 7 e 8 do Acordo de TRIPs. Por ora, muitos dos países em desenvolvimento e LDCs que têm aceitado grandes obrigações de Propriedade Intelectual nos últimos anos, tem simplesmente faltado a infra-estrutura e capacidade institucional necessária para absorver tal tecnologia.

Mesmo nos países em desenvolvimento que devem ter um certo grau de capacidade de absorção tecnológica e altos padrões de proteção de Propriedade Intelectual têm falhado no fomento da transferência de tecnologia através do investimento estrangeiro direto e licenciado. Em efeito, medidas corretivas são necessárias para direcionar a incapacidade dos acordos e tratados existentes de Propriedade Intelectual que promovem uma real transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento e LDCs.

Sobre isso, um novo corpo subsidiário dentro da OMPI poderia ser estabelecido para olhar quais medidas dentro do sistema de Propriedade Intelectual poderiam ser experimentadas para garantir uma efetiva transferência de tecnologia aos países em vias de desenvolvimento. Entre estas medidas, notamos com particular interesse a idéia de estabelecer um regime internacional que promoveria o acesso dos países em desenvolvimento aos resultados de pesquisa fundados publicamente nos países desenvolvidos. Este regime poderia levar a um Tratado de Acesso à Tecnologia e Ciência Básica. É também importante que o fornecimento claro de transferência tecnológica seja incluso nos tratados correntemente em negociação na OMPI.

VI – A dimensão do desenvolvimento e observância da Propriedade Intelectual

A observância da Propriedade Intelectual deveria também ser abordado no contexto de interesses sociais amplos e preocupações relacionadas ao desenvolvimento, de acordo com o artigo 7 do TRIPs. Os direitos dos países de implementar suas obrigações internacionais de acordo com seus próprios sistemas e práticas legais, como claramente previsto pelo artigo 1.1 do TRIPs, deveriam ser salvaguardados.

No estabelecimento do Comitê de Conselho de Observância (ACE) em 2002, a Assembléia Geral da OMPI claramente rejeitou uma abordagem “TRIPs plus” aos problemas de observância, decidindo deliberadamente excluir todas as atividades de regulamentação delegadas ao Comitê. No empreendimento de qualquer futuro trabalho sob seu mandato, o ACE deveria ser guiado por uma abordagem balanceada sobre a observância da Propriedade Intelectual. O ACE não pode abordar este assunto exclusivamente da perspectiva do direito dos proprietários, nem ter suas discussões focadas estreitamente no estorvo do infringimento dos direitos de Propriedade Intelectual. Tais discussões são importantes, mas o ACE deve também considerar como melhor garantir a observância de todas as provisões relacionadas ao TRIPs, bem como incluindo aquelas que imputariam obrigações ao direito dos proprietários.

Atenção particular deveria ser dada à necessidade de assegurar que os procedimentos de observância sejam justos e eqüitativos, e não sirvam para práticas abusivas pelo direito dos donos que devem impropriamente restringir a competição legítima. A este respeito, notamos que o artigo 8 de TRIPs menciona que as medidas corretivas devem ser necessárias para restringir práticas que podem adversamente afetar o comércio e a transferência internacional de tecnologia. Deve-se também ter em mente a provisão relacionada ao artigo 40 do TRIPs, que direciona práticas anti-competitivas em licenças contratuais. Todas estas provisões do Acordo de TRIPs deveriam ser adequadamente trazidas para a estrutura da OMPI.

VII – Promovendo “ desenvolvimento orientado” da cooperação e da assistência técnica

A OMPI é o principal organismo multilateral provedor de assistência tecnológica no campo da propriedade intelectual. Em virtude do acordo com a OMC em 1995, este organismo mantém um papel importante nos países em desenvolvimento com a assistência tecnológica para implementar o acordo TRIPs. Como uma agência especializada do sistema das Nações Unidas, a OMPI tem obrigação de garantir que as atividades de cooperação técnica sejam guiadas para a implementação de todos os objetivos relevantes ao desenvolvimento das Nações Unidas, que não são limitados somente ao desenvolvimento econômico. Estas atividades devem também ser completamente consistentes com os requisitos das atividades operacionais das Nações Unidas neste campo – elas devem ser, em particular, neutras, imparciais e dirigidas de acordo com a demanda.

Os programas de cooperação técnica sobre problemas relacionados à propriedade intelectual devem ser consideravelmente expandidos e qualitativamente melhorados. Isto é importante para garantir que em todos os países os custos da proteção da Propriedade Intelectual não se sobreponham aos benefícios deste. A este respeito, os regimes nacionais, construídos para implementar as obrigações internacionais, devem ser sustentáveis administrativamente e não sobrecarregarem os escassos recursos nacionais, que devem ser mais produtivos empregados em outras áreas. Além do mais, a cooperação técnica deve contribuir para garantir que os custos sociais da proteção da Propriedade Intelectual sejam, pelo menos, mantidos.

A assistência legislativa da OMPI deverá garantir que as leis nacionais sobre Propriedade Intelectual sejam feitas sob medida para alcançar diferentes níveis de desenvolvimento dos países e, também sejam totalmente responsáveis para as necessidades específicas e problemas de cada sociedade individualmente. Deve também, ser direcionada a assistir países em desenvolvimento para que façam total uso das flexibilidades dos acordos existentes sobre Propriedade Intelectual, em particular para promover importantes objetivos da política pública.


VIII – Uma Organização dirigida por membros aberta a comunicação para todos os setores da sociedade, em particular da sociedade civil

Um sistema balanceado de proteção da Propriedade Intelectual deverá servir o interesse de todos os setores da sociedade. Dada as amplas implicações da política pública de Propriedade Intelectual, é essencial envolver comensuravelmente todos os setores da sociedade nas discussões sobre Propriedade Intelectual, tanto no âmbito nacional como no internacional, incluindo todas as atividades de regulamentação. As organizações não-governamentais de interesse público deverão ter permissão para participar ativamente de atividades e discussões tomando lugar nos corpos auxiliares da OMPI. Isto irá ajudar a garantir que, tanto na regulamentação da Propriedade Intelectual quanto na implementação nacional de obrigações internacionais existentes, uma balança própria seja determinada entre produtores e usuários do conhecimento tecnológico, de modo que assegure serviços de total interesse público.

Atualmente, na OMPI, o termo ONG é usado para descrever tanto ONG’s de interesse público como organizações de usuários. Isto cria uma confusão e não parece consistente com a prática existente das Nações Unidas, como implementado na maioria das agências especializadas das Nações Unidas. É necessário, na OMPI, providenciar medidas apropriadas para distinguir entre organizações de usuários, representando os interesses dos possuidores de direito de Propriedade Intelectual, de ONG’s representando o interesse público.

IX – Conclusão

A visão que promove os benefícios absolutos da proteção da Propriedade Intelectual sem reconhecer preocupações da política pública debilita a credibilidade do sistema de Propriedade Intelectual. Integrar a dimensão do desenvolvimento dentro do sistema de Propriedade Intelectual e das atividades da OMPI, por outro lado, fortalecerá a credibilidade do sistema de Propriedade Intelectual e encorajará sua ampla aceitação como uma importante ferramenta para a promoção de inovação, criatividade e desenvolvimento.


Os Descaminhos dos Direitos Autorais

Desde o início da década de 90, os direitos de propriedade intelectual – em seus dois grandes ramos, a propriedade industrial (patentes e marcas) e os direitos autorais (direito de autor e direitos conexos) - passaram a fazer parte dos principais acordos multilaterais de comércio.

A razão para tal fato vem do grande salto tecnológico ocorrido nas últimas décadas do séculos XX, tornando os bens intelectuais um ativo de grande relevância nas trocas comerciais e revestido de uma importância estratégica para as políticas publicas de todos os países.


No que diz respeito aos direitos autorais, o advento da tecnologia digital e da Internet proporcionou facilidades antes inimagináveis. Além da reprodução de obras com a obtenção de cópias de alta qualidade, tornou possível a distribuição de obras protegidas numa escala planetária, criando sérias dificuldades para o controle da circulação das obras. Ao mesmo tempo em que abriu formidáveis perspectivas para a difusão da cultura, da informação e da tecnologia, criou um terreno fértil para a disseminação da reprodução não autorizada.


Nesse contexto, o surgimento do Acordo TRIPS – Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (1994), anexo do acordo constitutivo da Organização Mundial do Comércio - OMC, aparece como um grande divisor de águas. Desde então, a propriedade intelectual tem sido matéria constante em qualquer acordo de livre comércio. Assim foi na ALCA, no Mercosul e nas negociações com a União Européia.


Antes do Acordo TRIPS já existiam convenções internacionais de direito privado, com destaque para a Convenção de Berna (para os direitos de autor) e a Convenção de Roma (para os direitos conexos). Ambas já incluíam o compromisso das partes signatárias de garantir aos estrangeiros titulares de direitos em um dado país o mesmo tratamento dado aos titulares de direito nacionais do próprio país – a chamada “cláusula de tratamento nacional”. Porém, com a passagem desse dispositivo para o plano do direito comercial internacional, tal compromisso passou a prever obrigações para a observância dos direitos, podendo ser objeto de mecanismos de solução de controvérsias, inclusive com possibilidade da imposição de severas sanções no comércio internacional.


O impacto econômico da legislação sobre direito de autor se concentra em grande medida no resultado das chamadas indústrias de direito de autor, que produzem/distribuem bens ou prestam serviços protegidos pelos direitos autorais. Estas indústrias incluem uma grande variedade de produtos: são livros, periódicos, fonogramas, obras audiovisuais, bases de dados, programas e jogos para computadores. Estudos vêm comprovando que estes setores produtivos vêm adquirindo uma participação cada vez mais importante dentro das economias nacionais.

De acordo com o relatório da IIPA – International Intellectual Property Alliance, em 2006 as chamadas indústrias de Copyright responderam por 6,56% do PIB norte-americano, agregando cerca de 819,97 bilhões de dólares. Uma participação superior ao de diversos outros ramos da economia, se tomados isoladamente (tal como a indústria de alimentos, a de eletro-eletrônicos, a indústria química e a de equipamentos industriais).


O Brasil também já possui dados preliminares, graças a um estudo patrocinado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em atendimento a solicitação da CDA/ MinC e realizado pela UNICAMP/GEOPI no ano 2000. Tendo como objeto os países dos Mercosul mais o Chile, os dados obtidos confirmam a tendência já detectada nos estudos acima citados. No caso brasileiro, as indústrias de Direito de Autor agregaram no ano de 1998 parcela equivalente a 6,74% ao PIB e respondendo por 5% do pessoal ocupado.


Outro aspecto relevante foi a confirmação do que já presumíamos: nossos países são fundamentalmente importadores de bens culturais. A importação de bens protegidos por direito de autor somou, no mesmo período, cerca de 1,3 bilhões de dólares, contra apenas 450 milhões das exportações (com uma ligeira tendência de crescimento desta última).

Observa-se um movimento crescente – tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento – no sentido de modificarem suas estruturas internas na área autoral para se adequarem às exigências impostas pela convergência tecnológica com vista a globalização da informação.

A situação no Brasil nesta área é preocupante, na medida em que o Executivo não possui mecanismos efetivos de ação na área autoral.

Há, no âmbito do Ministério da Cultura, uma Coordenação-Geral de Direito Autoral, subordinada à Secretaria de Políticas Culturais do MinC, que possui uma estrutura tímida e limitada e que não tem como dar conta das demandas, cada vez mais freqüentes e urgentes, na área de direito autoral. No que pese o esforço empreendido pela gestão do Ministro Gilberto Gil.

Após a desativação do Conselho Nacional de Direito Autoral - CNDA, em março de 1990, a formulação de políticas públicas para área dos direitos autorais ficou consideravelmente prejudicada. Predominou desde então uma equivocada concepção que vê os direitos autorais como objeto de interesse essencialmente privado, não cabendo ao Estado nenhum tipo de ação ou tutela.

Essa concepção vai de encontro à tendência internacional onde, conforme salientamos, dado o impacto econômico da tecnologia digital o tema se deslocou do âmbito de direito internacional privado para o direito comercial internacional, gerando obrigações adicionais que os Estados devem observar.

A ausência de instrumentos que possibilitem a formulação e implementação de políticas públicas nessa matéria significa abdicar de sua inclusão numa estratégia global de desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural. As conseqüências dessa lacuna poderá ser o agravamento da irremediável dos mecanismos de dependência externa, sobretudo, no que se refere às novas tecnologias, bens e serviços no âmbito da indústria cultural.

A proteção ao direito autoral no limite da legislação nacional é a primeira condição a se observar para criar as condições que permitirão aos autores nacionais obter um benefício da utilização de suas obras e, portanto, consagrar todos os seus esforços para a criação de obras literárias ou artísticas. A proteção dos direitos patrimoniais e morais devem estimular os autores a contribuir para uma maior difusão possível das obras dentro da ótica do progresso artístico e tecnológico.

É necessário, pois, ocupar este grande espaço em matéria de modernização e adaptação das legislações nacionais e das instituições de gestão governamental de direito autoral no Brasil. A redefinição dos aspectos relacionados com a tutela administrativa dos direitos autorais permitirá a retomada desse processo, estabelecendo os limites exigidos para a atuação do Estado na área autoral e sua presença ativa na formulação das estratégias de desenvolvimento do país.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O Estado e as Associações Autorais

Parece haver um certo consenso sobre a existência de um controle do Estado sobre as práticas adotadas pelas organizações que administram os direitos autorais de execução pública. A razão apresentada, normalmente, fundamenta-se no fato desses organismos exercerem suas atividades com base numa situação de monopólio, seja de fato seja de direito. O controle estatal seria, portanto, um importante mecanismo para evitar possíveis abusos adotados pelas associações autorais e, também, para solucionar litígios entre essas associações e os usuários em geral, impedindo que a única alternativa à disposições das partes seja os tribunais.

A supervisão estatal, termo mais adequado que “controle”, segundo Ulrich Uchtenhagen, é de suma importância para o estabelecimento de novas associações de gestão coletiva de direitos. As bases desta necessidade de apoio oficial, segundo ele, estariam justificadas por: a) as atividades de associações que administram direitos autorais abarcam obrigações que também estão dentro das responsabilidades do Estado; b) a interface existente entre as concessões públicas de canais de rádio e televisão e as atividades de arrecadação das associações; c) os registros estatais; d) as leis sobre monopólio estatal; e) os regulamentos estatais sobre divisas, ações penais e outras.

O especialista suíço afirma que “a supervisão estatal pode ser obtida se os direitos dos autores e dos artistas intérpretes ou executantes são administrados corretamente, com imparcialidade e economia. Este seria um aspecto positivo para que se permitisse ao Estado a possibilidade de inspecionar e supervisionar as operações desenvolvidas pelas associações de gestão coletiva de direitos”. Em qualquer país, um aval do Estado de que essas associações atuam corretamente e que suas finanças estão em ordem possuem um valor considerável para suas negociações com outros usuários.

Esta interferência do Estado, entretanto, parece radicar nas condições políticas, econômicas, culturais e jurídicas onde se pretende constituir a administração coletiva de direitos. Em alguns países com economia de mercado predominam as organizações privadas, já em outros um sistema misto, e, há também, aquelas que estão sujeitas a uma fiscalização bastante próxima das autoridades públicas apesar de serem privadas (em nosso continente podemos citar o caso da Argentina, Peru, Colômbia e Venezuela).

Para Mihály Ficsor, ex-diretor da Divisão de Direito de Autor da OMPI, aqueles que sustentam que para os países em desenvolvimento as entidades de direito público constituem a fórmula mais adequada, costumam referir-se às condições especiais que existem nestes países: “Neles, as vezes, o número de autores é relativamente pequeno e carecem de recursos suficientes para assumirem as despesas iniciais para a fundação de uma organização de administração coletiva. A contribuição estatal, portanto, seria de extrema importância. Além do mais, é freqüente que os usuários mais importante (como a radiodifusão) também sejam instituições públicas com forte apoio estatal, onde as negociações em termos de ingressos para os autores seriam mais facilitadas”.

A este respeito parece não existir uma fórmula pronta que indique o melhor modelo a ser adotado pelos países. O importante é que, seja mediante um sistema por organizações privadas seja por instituições públicas, deve ser assegurado aos autores e demais titulares de direitos a possibilidade de influírem no processo de administração dos seus direitos.

O modelo brasileiro instituído pela Lei n. 5.988, de 14 de dezembro de 1973 previa uma forte tutela administrativa com a interferência do Estado em vários momentos da vida societária. Podemos afirmar, com certeza, que este modelo refletia o momento político nacional de cerceamento das liberdades e garantias individuais.

Segundo a lei autoral brasileira anterior, as associações autorais necessitavam de autorização prévia para funcionarem no país pelo extinto Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), assim como o art. 106 determinava o conteúdo dos estatutos das mesmas, indicando entre os inciso I a VI: a denominação, os fins e sede da associação; os requisitos para admissão, demissão e exclusão de associados; os direitos e deveres dos associados; as fontes de recursos para sua manutenção; o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos e outros procedimentos.

Da mesma forma, os arts. 108 a 114 disciplinavam os órgãos internos das associações, a Assembléia Geral, a Diretoria e o Conselho Fiscal. A Assembléia Geral era o órgão máximo das associações e a lei regulava o seu funcionando especificando a quantidade de reuniões e seus aspectos formais, o processo de deliberação e votação, a quantidade de membros da Diretoria e do Conselho Fiscal. Por solicitação de um terço dos associados, o extinto (CNDA) era obrigado a designar um representante para acompanhar e fiscalizar os trabalhos da Assembléia Geral, assim como estabelecia o critério de votos dos associados.

O art. 114 especificava as obrigações das associações autorais brasileiras em relação ao (CNDA), a saber:

I – informá-lo, de imediato, de qualquer alteração no estatuto, na direção e nos órgãos de representação e fiscalização, bem como a relação de seus associados ou representados, e suas obras;

II – encaminhar-lhe cópia dos convênios celebrados com associações estrangeiras, informando-o das alterações realizadas;

III – apresentar-lhe até 30 de março de cada ano, com relação ao ano anterior:

a) relatório de suas atividades;

b) cópia autêntica do balanço;

c) relação das quantias distribuídas a seus associados ou representantes, e as despesas efetuadas.

IV – prestar-lhes as informações que solicitar, bem como exibir-lhe seus livros e documentos.

O próprio Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) foi criado por lei, mediante o art. 115 que determinava: “As associações organizarão, dentro do prazo e consoante às normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Direito Autoral, um Escritório Central de Arrecadação e Distribuição dos direitos relativos à execução pública, inclusive através da radiodifusão e da exibição cinematográfica, das composições musicais ou lítero-musicais de fonogramas”. O §1º do referido artigo deixava claro que o (ECAD) não tinha finalidade de lucro e reger-se-ia por estatuto a ser aprovado pelo extinto Conselho Nacional de Direito Autoral. Complementando as obrigações o § 2º determinava que bimensalmente o (ECAD) deveria encaminhar ao (CNDA) relatório de suas atividades e balancetes, observadas as normas que este fixava.

O modelo intervencionista brasileiro foi complementado pelas atribuições que a legislação conferiu ao Conselho Nacional de Direito Autoral, no seu art. 117, ao incumbir-lhe a autorização do funcionamento das associações e, a seu critério, cassar-lhes a autorização, após, no mínimo, três intervenções (que eram possíveis de serem realizadas quando as associações ou o ECAD descumprissem as determinações ou disposições legais, ou lesavam, de qualquer modo, os interesses dos associados). O Conselho também fixava normas para unificação dos preços e sistemas de cobranças e distribuição de direitos autorais, exercendo forte fiscalização nas associações e no Escritório Central, impondo, ademais, normas de contabilidade, planos contábeis e de escrituração o que era uma intervenção direta no funcionamento da associações autorais.

Como na época da edição da Lei n.5988/73 existia a censura no País, a autoridade policial, encarregada da censura de espetáculos ou transmissões pelo rádio ou televisão, era obrigada a encaminhar ao (CNDA), cópias das programações, autorizações e recibos de depósitos a ela apresentadas, em conformidade com a legislação vigente.

Com a edição do texto constitucional de 1988, onde a participação das associações autorais brasileira foi bastante ativa, caiu por terra os principais dispositivos intervencionistas. O retorno ao estado democrático e de direito no País propiciou as mais variadas interpretações dos princípios constitucionais que, de certa forma, coincidiu com o chamado enxugamento da máquina administrativa e Reforma do Estado que culminou com a redução das ingerências do mesmo nos negócios civis.

Os princípios constitucionais mais freqüentemente mencionados para justificar o afastamento do Estado na administração coletiva de direitos autorais estão consignados no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no seu art. 5º, onde podemos citar alguns desses dispositivos, a saber:

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;(grifo nosso)

XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:

.................................................................................................

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais ou associativas.

Por outro lado, a atual lei autoral (Lei n. 9.610/98), é silente sobre os mecanismos de supervisão estatal no que se refere a questão da administração coletiva de direitos autorais. E o é em decorrência do projeto de lei ter sido originário no legislativo, o que impediu a sustentação de qualquer proposta que implicasse em responsabilidade administrativa ao Executivo, uma vez que nestes casos, esta é uma prerrogativa do Presidente da República, conforme determina a Constituição Federal.

A ausência, na lei autoral, dos aspectos relacionados com a tutela administrativa e as interpretações conferidas aos preceitos constitucionais nos levam a afirmar que o Brasil, talvez, seja o único país do mundo onde não existe qualquer tipo de fiscalização por parte do Estado na administração coletiva de direitos autorais. As associações não precisam de uma autorização formal do Estado para funcionarem, não há nenhum tipo de regulamentação a ser seguida ou norma que seja imposta ao cumprimento dessas associações. E, tampouco há, pelo menos formalmente, qualquer órgão no Executivo que proceda a fiscalização dos atos gerados no seio das associações autorais brasileiras, especialmente aqueles relacionados com a arrecadação e distribuição.

Não se propõe, e mesmo não teria espaço dentro da configuração do Estado brasileiro, uma tutela administrativa onde houvesse um retorno à necessidade de intervenção no funcionamento das associações autorais, muito menos de que elas ficassem subordinadas às regras de contabilidade impostas por qualquer órgão estatal. Entretanto, é muito difícil entender que exercendo um monopólio de direito (art. 99 da Lei nº 9.610/98) não exista nenhum mecanismo de fiscalização por parte do Estado. Mesmo porque quando analisamos, por exemplo, a situação dos consórcios (que também são de cunho privados), nem por isso o Banco Central deixa de normatizar a área e proceder a fiscalização devida. Parece-nos, pois, equivocada a interpretação do inciso XVIII, acima mencionado, quando se pretende afirmar que uma ação fiscalizadora nesta aérea estaria infringindo o preceito constitucional brasileiro, constante do art. 5º da CF.

O Estado poderia ter uma ação supletiva na consolidação da administração coletiva no território nacional. A ausência de uma tutela administrativa, tem propiciado um custo relativamente caro às partes envolvidas em litígios na área autoral, uma vez que só lhe restam recorrerem aos tribunais. De igual maneira, poder-se-ia ter mecanismos mais efetivos junto aos organismos de radiodifusão e aos demais usuários se o Estado, com base em informações de cumprimento das obrigações por parte das associações autorais, tivesse uma atuação mediadora e conciliatória que propiciasse aos autores uma maior arrecadação e maior respeito pelos seus direitos.

A lacuna da tutela administrativa tem merecido severas críticas de renomados autoralistas. José de Oliveira Ascensão, no seu livro "Direito Autoral" (2ª edição, ref. e ampl. - Rio de Janeiro; Renovar, 1997) já afirmava: "Abandona-se o Direito Autoral à lei da selva, em vez de se prover à sua disciplina justa. Desarma-se o poder público, na atuação num setor de que não pode desinteressar-se. Pelo contrário, a evolução nacional e internacional vai seguramente no sentido de lhe dar cada vez maior relevância".

A par das correntes mais ou menos liberais sobre a presença do Estado na área autoral é de se observar, por outro lado, as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro ao assinar o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, o chamado Acordo de TRIPs, onde podemos encontrar fortes dispositivos de "enforcement". O não cumprimento dessas normas podem, em determinadas circunstâncias, extrapolar o âmbito da propriedade intelectual e atingir o importante setor do comércio exterior como um todo, face a ênfase hoje conferida aos aspectos econômicos e tecnológicos da propriedade intelectual.

Não haverá abrigo, pois, para interpretações equivocadas de que sendo fundamentalmente direitos privados o Estado deva se apartar das questões relativas à gestão coletiva de direitos autorais, notadamente, na área de execução musical. Foi-se o tempo da interpretação territorial, da aplicação legal restrita aos titulares nacionais. Como já sinalizou, inclusive, a própria radiodifusão por satélites a despeito dos problemas hoje originários pela utilização de obras protegidas no chamado ambiente digital.

Afirmamos, em artigo anterior, nossa opinião de que nenhuma estratégia de desenvolvimento sustentável no Brasil poderia prescindir do direito autoral como instrumento fundamental para suas empresas de bens culturais e instituições de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.

A tutela administrativa no processo de globalização, ao qual os países em desenvolvimento estão sendo instados a participar, não deve pretender obviamente substituir o acesso à tutela civil e penal. Cremos, todavia, de importância crucial a existência de um órgão administrativo que tivesse a incumbência de solucionar pendências e litígios, aclarar dispositivos legais e propiciar aos titulares uma alternativa de fiscalização - a par daquelas previstas no ordenamento jurídico atual - para melhorar a transparência e funcionamento do sistema de gestão coletiva de direitos, assim como incentivar a adoção de mecanismos para a qualificação da doutrina e jurisprudência brasileira, face a indigência do ensino de direito autoral nas universidades do País.

Finalmente, uma tutela administrativa adequada instrumentalizará o Estado na competência que lhe cabe como negociador de novos instrumentos internacionais na área da propriedade intelectual, onde se observa estreita vinculação deste tema com as normas que regulam o comércio internacional. Acreditamos que a regulamentação da tutela administrativa na área autoral também proverá o País do que o embaixador Celso Lafer chamou de "aparelhagem integrada do Brasil", no sentido de que se tenha agilidade e aproveitamento das oportunidades e desafios no processo negociador junto às organizações internacionais relacionadas com a questão da propriedade intelectual.

© Otávio Afonso