segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O Estado e as Associações Autorais

Parece haver um certo consenso sobre a existência de um controle do Estado sobre as práticas adotadas pelas organizações que administram os direitos autorais de execução pública. A razão apresentada, normalmente, fundamenta-se no fato desses organismos exercerem suas atividades com base numa situação de monopólio, seja de fato seja de direito. O controle estatal seria, portanto, um importante mecanismo para evitar possíveis abusos adotados pelas associações autorais e, também, para solucionar litígios entre essas associações e os usuários em geral, impedindo que a única alternativa à disposições das partes seja os tribunais.

A supervisão estatal, termo mais adequado que “controle”, segundo Ulrich Uchtenhagen, é de suma importância para o estabelecimento de novas associações de gestão coletiva de direitos. As bases desta necessidade de apoio oficial, segundo ele, estariam justificadas por: a) as atividades de associações que administram direitos autorais abarcam obrigações que também estão dentro das responsabilidades do Estado; b) a interface existente entre as concessões públicas de canais de rádio e televisão e as atividades de arrecadação das associações; c) os registros estatais; d) as leis sobre monopólio estatal; e) os regulamentos estatais sobre divisas, ações penais e outras.

O especialista suíço afirma que “a supervisão estatal pode ser obtida se os direitos dos autores e dos artistas intérpretes ou executantes são administrados corretamente, com imparcialidade e economia. Este seria um aspecto positivo para que se permitisse ao Estado a possibilidade de inspecionar e supervisionar as operações desenvolvidas pelas associações de gestão coletiva de direitos”. Em qualquer país, um aval do Estado de que essas associações atuam corretamente e que suas finanças estão em ordem possuem um valor considerável para suas negociações com outros usuários.

Esta interferência do Estado, entretanto, parece radicar nas condições políticas, econômicas, culturais e jurídicas onde se pretende constituir a administração coletiva de direitos. Em alguns países com economia de mercado predominam as organizações privadas, já em outros um sistema misto, e, há também, aquelas que estão sujeitas a uma fiscalização bastante próxima das autoridades públicas apesar de serem privadas (em nosso continente podemos citar o caso da Argentina, Peru, Colômbia e Venezuela).

Para Mihály Ficsor, ex-diretor da Divisão de Direito de Autor da OMPI, aqueles que sustentam que para os países em desenvolvimento as entidades de direito público constituem a fórmula mais adequada, costumam referir-se às condições especiais que existem nestes países: “Neles, as vezes, o número de autores é relativamente pequeno e carecem de recursos suficientes para assumirem as despesas iniciais para a fundação de uma organização de administração coletiva. A contribuição estatal, portanto, seria de extrema importância. Além do mais, é freqüente que os usuários mais importante (como a radiodifusão) também sejam instituições públicas com forte apoio estatal, onde as negociações em termos de ingressos para os autores seriam mais facilitadas”.

A este respeito parece não existir uma fórmula pronta que indique o melhor modelo a ser adotado pelos países. O importante é que, seja mediante um sistema por organizações privadas seja por instituições públicas, deve ser assegurado aos autores e demais titulares de direitos a possibilidade de influírem no processo de administração dos seus direitos.

O modelo brasileiro instituído pela Lei n. 5.988, de 14 de dezembro de 1973 previa uma forte tutela administrativa com a interferência do Estado em vários momentos da vida societária. Podemos afirmar, com certeza, que este modelo refletia o momento político nacional de cerceamento das liberdades e garantias individuais.

Segundo a lei autoral brasileira anterior, as associações autorais necessitavam de autorização prévia para funcionarem no país pelo extinto Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), assim como o art. 106 determinava o conteúdo dos estatutos das mesmas, indicando entre os inciso I a VI: a denominação, os fins e sede da associação; os requisitos para admissão, demissão e exclusão de associados; os direitos e deveres dos associados; as fontes de recursos para sua manutenção; o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos e outros procedimentos.

Da mesma forma, os arts. 108 a 114 disciplinavam os órgãos internos das associações, a Assembléia Geral, a Diretoria e o Conselho Fiscal. A Assembléia Geral era o órgão máximo das associações e a lei regulava o seu funcionando especificando a quantidade de reuniões e seus aspectos formais, o processo de deliberação e votação, a quantidade de membros da Diretoria e do Conselho Fiscal. Por solicitação de um terço dos associados, o extinto (CNDA) era obrigado a designar um representante para acompanhar e fiscalizar os trabalhos da Assembléia Geral, assim como estabelecia o critério de votos dos associados.

O art. 114 especificava as obrigações das associações autorais brasileiras em relação ao (CNDA), a saber:

I – informá-lo, de imediato, de qualquer alteração no estatuto, na direção e nos órgãos de representação e fiscalização, bem como a relação de seus associados ou representados, e suas obras;

II – encaminhar-lhe cópia dos convênios celebrados com associações estrangeiras, informando-o das alterações realizadas;

III – apresentar-lhe até 30 de março de cada ano, com relação ao ano anterior:

a) relatório de suas atividades;

b) cópia autêntica do balanço;

c) relação das quantias distribuídas a seus associados ou representantes, e as despesas efetuadas.

IV – prestar-lhes as informações que solicitar, bem como exibir-lhe seus livros e documentos.

O próprio Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) foi criado por lei, mediante o art. 115 que determinava: “As associações organizarão, dentro do prazo e consoante às normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Direito Autoral, um Escritório Central de Arrecadação e Distribuição dos direitos relativos à execução pública, inclusive através da radiodifusão e da exibição cinematográfica, das composições musicais ou lítero-musicais de fonogramas”. O §1º do referido artigo deixava claro que o (ECAD) não tinha finalidade de lucro e reger-se-ia por estatuto a ser aprovado pelo extinto Conselho Nacional de Direito Autoral. Complementando as obrigações o § 2º determinava que bimensalmente o (ECAD) deveria encaminhar ao (CNDA) relatório de suas atividades e balancetes, observadas as normas que este fixava.

O modelo intervencionista brasileiro foi complementado pelas atribuições que a legislação conferiu ao Conselho Nacional de Direito Autoral, no seu art. 117, ao incumbir-lhe a autorização do funcionamento das associações e, a seu critério, cassar-lhes a autorização, após, no mínimo, três intervenções (que eram possíveis de serem realizadas quando as associações ou o ECAD descumprissem as determinações ou disposições legais, ou lesavam, de qualquer modo, os interesses dos associados). O Conselho também fixava normas para unificação dos preços e sistemas de cobranças e distribuição de direitos autorais, exercendo forte fiscalização nas associações e no Escritório Central, impondo, ademais, normas de contabilidade, planos contábeis e de escrituração o que era uma intervenção direta no funcionamento da associações autorais.

Como na época da edição da Lei n.5988/73 existia a censura no País, a autoridade policial, encarregada da censura de espetáculos ou transmissões pelo rádio ou televisão, era obrigada a encaminhar ao (CNDA), cópias das programações, autorizações e recibos de depósitos a ela apresentadas, em conformidade com a legislação vigente.

Com a edição do texto constitucional de 1988, onde a participação das associações autorais brasileira foi bastante ativa, caiu por terra os principais dispositivos intervencionistas. O retorno ao estado democrático e de direito no País propiciou as mais variadas interpretações dos princípios constitucionais que, de certa forma, coincidiu com o chamado enxugamento da máquina administrativa e Reforma do Estado que culminou com a redução das ingerências do mesmo nos negócios civis.

Os princípios constitucionais mais freqüentemente mencionados para justificar o afastamento do Estado na administração coletiva de direitos autorais estão consignados no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no seu art. 5º, onde podemos citar alguns desses dispositivos, a saber:

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;(grifo nosso)

XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:

.................................................................................................

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais ou associativas.

Por outro lado, a atual lei autoral (Lei n. 9.610/98), é silente sobre os mecanismos de supervisão estatal no que se refere a questão da administração coletiva de direitos autorais. E o é em decorrência do projeto de lei ter sido originário no legislativo, o que impediu a sustentação de qualquer proposta que implicasse em responsabilidade administrativa ao Executivo, uma vez que nestes casos, esta é uma prerrogativa do Presidente da República, conforme determina a Constituição Federal.

A ausência, na lei autoral, dos aspectos relacionados com a tutela administrativa e as interpretações conferidas aos preceitos constitucionais nos levam a afirmar que o Brasil, talvez, seja o único país do mundo onde não existe qualquer tipo de fiscalização por parte do Estado na administração coletiva de direitos autorais. As associações não precisam de uma autorização formal do Estado para funcionarem, não há nenhum tipo de regulamentação a ser seguida ou norma que seja imposta ao cumprimento dessas associações. E, tampouco há, pelo menos formalmente, qualquer órgão no Executivo que proceda a fiscalização dos atos gerados no seio das associações autorais brasileiras, especialmente aqueles relacionados com a arrecadação e distribuição.

Não se propõe, e mesmo não teria espaço dentro da configuração do Estado brasileiro, uma tutela administrativa onde houvesse um retorno à necessidade de intervenção no funcionamento das associações autorais, muito menos de que elas ficassem subordinadas às regras de contabilidade impostas por qualquer órgão estatal. Entretanto, é muito difícil entender que exercendo um monopólio de direito (art. 99 da Lei nº 9.610/98) não exista nenhum mecanismo de fiscalização por parte do Estado. Mesmo porque quando analisamos, por exemplo, a situação dos consórcios (que também são de cunho privados), nem por isso o Banco Central deixa de normatizar a área e proceder a fiscalização devida. Parece-nos, pois, equivocada a interpretação do inciso XVIII, acima mencionado, quando se pretende afirmar que uma ação fiscalizadora nesta aérea estaria infringindo o preceito constitucional brasileiro, constante do art. 5º da CF.

O Estado poderia ter uma ação supletiva na consolidação da administração coletiva no território nacional. A ausência de uma tutela administrativa, tem propiciado um custo relativamente caro às partes envolvidas em litígios na área autoral, uma vez que só lhe restam recorrerem aos tribunais. De igual maneira, poder-se-ia ter mecanismos mais efetivos junto aos organismos de radiodifusão e aos demais usuários se o Estado, com base em informações de cumprimento das obrigações por parte das associações autorais, tivesse uma atuação mediadora e conciliatória que propiciasse aos autores uma maior arrecadação e maior respeito pelos seus direitos.

A lacuna da tutela administrativa tem merecido severas críticas de renomados autoralistas. José de Oliveira Ascensão, no seu livro "Direito Autoral" (2ª edição, ref. e ampl. - Rio de Janeiro; Renovar, 1997) já afirmava: "Abandona-se o Direito Autoral à lei da selva, em vez de se prover à sua disciplina justa. Desarma-se o poder público, na atuação num setor de que não pode desinteressar-se. Pelo contrário, a evolução nacional e internacional vai seguramente no sentido de lhe dar cada vez maior relevância".

A par das correntes mais ou menos liberais sobre a presença do Estado na área autoral é de se observar, por outro lado, as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro ao assinar o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, o chamado Acordo de TRIPs, onde podemos encontrar fortes dispositivos de "enforcement". O não cumprimento dessas normas podem, em determinadas circunstâncias, extrapolar o âmbito da propriedade intelectual e atingir o importante setor do comércio exterior como um todo, face a ênfase hoje conferida aos aspectos econômicos e tecnológicos da propriedade intelectual.

Não haverá abrigo, pois, para interpretações equivocadas de que sendo fundamentalmente direitos privados o Estado deva se apartar das questões relativas à gestão coletiva de direitos autorais, notadamente, na área de execução musical. Foi-se o tempo da interpretação territorial, da aplicação legal restrita aos titulares nacionais. Como já sinalizou, inclusive, a própria radiodifusão por satélites a despeito dos problemas hoje originários pela utilização de obras protegidas no chamado ambiente digital.

Afirmamos, em artigo anterior, nossa opinião de que nenhuma estratégia de desenvolvimento sustentável no Brasil poderia prescindir do direito autoral como instrumento fundamental para suas empresas de bens culturais e instituições de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.

A tutela administrativa no processo de globalização, ao qual os países em desenvolvimento estão sendo instados a participar, não deve pretender obviamente substituir o acesso à tutela civil e penal. Cremos, todavia, de importância crucial a existência de um órgão administrativo que tivesse a incumbência de solucionar pendências e litígios, aclarar dispositivos legais e propiciar aos titulares uma alternativa de fiscalização - a par daquelas previstas no ordenamento jurídico atual - para melhorar a transparência e funcionamento do sistema de gestão coletiva de direitos, assim como incentivar a adoção de mecanismos para a qualificação da doutrina e jurisprudência brasileira, face a indigência do ensino de direito autoral nas universidades do País.

Finalmente, uma tutela administrativa adequada instrumentalizará o Estado na competência que lhe cabe como negociador de novos instrumentos internacionais na área da propriedade intelectual, onde se observa estreita vinculação deste tema com as normas que regulam o comércio internacional. Acreditamos que a regulamentação da tutela administrativa na área autoral também proverá o País do que o embaixador Celso Lafer chamou de "aparelhagem integrada do Brasil", no sentido de que se tenha agilidade e aproveitamento das oportunidades e desafios no processo negociador junto às organizações internacionais relacionadas com a questão da propriedade intelectual.

© Otávio Afonso